A gambiarra deu ruim. Por Paulo Cidmil

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A gambiarra deu ruim. Por Paulo Cidmil
Setor do hospital municipal de Santarém atingido pelo incêndio. Foto: Reprodução

No dia 12 de setembro, a cidade acordou em meio a um pesadelo previsível: incêndio no Hospital Municipal de Santarém. Sabíamos que em algum momento algo de muito ruim iria acontecer ali.

Não foi uma greve geral, não foi uma nova bactéria que se disseminou naquele ambiente sombrio, úmido, mal iluminado e insalubre; não foi parte da estrutura que caiu. Foi só um incêndio que estava ali hibernando, esperando seu dia de destaque no noticiário.

Em setembro de 2020, fui surpreendido por uma hérnia ignal pré-existente, que se rompeu. Com muitas dores e uma perna com pouca mobilidade, liguei para um amigo pedindo que me levasse ao hospital. Fomos ao Municipal, chegamos antes das 15 horas.

Meu amigo, advogado e pai de enfermeira, ao perceber que seria difícil o atendimento, pediu auxílio. A filha logo chegou ao hospital, local onde trabalhou por alguns anos. Mas seu esforço para que eu fosse atendido não prosperou.

Não havia médico para me avaliar. A mim era visível que o caso seria de uma cirurgia de emergência. Ela não mediu esforços, falou com plantonistas, médicos e todos a quem pode ter o. Ligou para médicos da equipe de cirurgia e só deixou o local após a promessa de que um médico cirurgião viria me avaliar.

Permaneci na companhia desse amigo até 21 horas, sentado em um banco, no corredor, na parte interna do hospital. Então procuramos a enfermaria. A responsável pelo setor ligou para o médico que informou ter ocorrido um imprevisto, mas que eu retornasse às sete da manhã que ele me examinaria.

Cheguei antes das sete, o médico veio me ver quase às nove, vinha de outro atendimento mais urgente. Para o exame não havia sala disponível, quando vagou uma não havia maca. Funcionários correram o hospital para atender ao pedido do médico, foi quando improvisaram uma maca de ambulância.

Todo esse tempo, apesar dos medicamentos, eu sentia dores e dificuldades com uma perna. O médico olhou a situação e disse vou tentar te livrar de uma cirurgia de emergência, e, mecanicamente, pressionando minha virilha, tentou fazer retornar o que havia descido.

Foi dor desesperadora, eu chorava como criança. Depois de umas três tentativas ele disse: É não tem jeito, vou ter que te operar. Tá em jejum? Confirmei com a cabeça. Primeiro falou para que eu ficasse direto, às 14 horas retornaria para fazer a cirurgia, depois autorizou que eu fosse até minha casa, onde tomei banho, me preparei psicologicamente e avisei a família.

Retornei às 13h30, apresentei-me à enfermaria, onde iniciaram os procedimentos legais e me pediram para aguardar. Às 15 horas uma enfermeira me conduziu até um corredor e me orientou. Siga até o final, dobre à direita, siga até uma porta, lá haverá uma enfermeira, é a sala de cirurgia.

Assim fui apresentado ao primeiro labirinto do HMS. Caminhar por aquele corredor sombrio, em declive, mal iluminado, com paredes e pisos encardidos, em direção a uma cirurgia sem exames prévios, sem risco cirúrgico. É um teste de resistência mental para saber se você quer se manter vivo.

Essa sala de espera era na verdade a extensão do corredor, com um cubículo ao lado. Enquanto aguardava, logo chegaram meu irmão e meu amigo. Fui convidado a entrar no cubículo e retirar minha roupa ficando de cueca. Minha roupa foi entregue aos meus acompanhantes, que se despediram.

Veio a enfermeira para me conduzir ao centro cirúrgico. É normal em hospitais lhe darem uma bata com frente e verso que fecha com pequenos laços nas laterais. Ela pergunta: você trouxe algo para vestir? Mulheres normalmente levam suas camisolas, eu ainda não adquiri esse hábito que seria providencial nesse momento. Respondi que não.

Levei apenas uma minúscula sacola onde estavam meu celular, algumas máscaras em um saco plástico e meus óculos. Ela diz: nós também não temos e você terá que tirar a cueca, vou tentar conseguir alguma coisa pra você se cobrir. Ela retorna com um pedaço de pano que um dia foi uma bata, agora já bem velhinho e faltando um pedaço. Enrolo-me nele, retiro a cueca e ela me conduz a sala de cirurgia.

Segundo informaram, minha cirurgia durou pouco mais de uma hora. Acordo, talvez umas nove da noite e a primeira coisa que me veio em mente foi constatar se eu estava de máscara. Havia pedido a meu irmão que me colocasse máscara assim que saísse da sala de cirurgia, estava apavorado com a ideia de pegar covid. Esse medo aumentou assim que constatei o excesso de pessoas e a precária situação do hospital. Houve esse cuidado e eu estava protegido.

Fui instalado em uma “enfermaria” que mais parecia um salão, com teto baixo, mal iluminado, sem ventilação ou vidros para entrar luminosidade externa, paredes e pisos encardidos, ar-condicionado mais ou menos, onde havia cerca de 30 pacientes, acomodados em leitos que pareciam macas. Não existia leitos com equipamentos adequados.

Desde a infância vivi muitas internações hospitalares, dentre essas, cinco cirurgias. Esse era o pior momento, eu estava nu, coberto com um pedaço de pano, de um lado uma jovem senhora acompanhada de sua irmã mais jovem, do outro um senhor de meia idade vítima de acidente de automóvel. Ambos aguardando cirurgia. Nossos leitos ficavam no meio do salão.

Meu amigo e irmão, muito atarefados, não retornaram, pagaram profissionais para o acompanhamento pós-cirurgia. Assim que acordei havia um rapaz que perguntou se eu estava bem, respondi que sim.Me ofereceu água e permaneceu sentado ao lado de meu leito. Eu estava muito sonolento e nem percebi que o rapaz havia ido embora, em seu lugar havia uma moça.

Por volta das 23 horas comecei a sentir dores que só aumentavam, na altura da coluna, local onde fui anestesiado. A intensidade da dor foi ficando inável, não havia posição que desse conforto.

Pedi a moça que havia dito estar ali para me acompanhar que fosse chamar uma enfermeira. Ela fez isso três ou quatro vezes, em todas demorava muito, disse que o local das enfermeiras era longe e que uma delas estaria vindo.

Pedia insistentemente que me ajudasse, com aquela dor intensa e ininterrupta, ela nada podia fazer. E na última vez que foi chamar  enfermeira, creio que às quatro da madrugada, ela foi e não mais retornou.

Eu suava, gemia, chorava, urrava. Instintivamente cobria-me com o pedaço de pano, mas não importava se estava sendo visto nu por toda a enfermaria. Olhava ao redor e quase todos os olhos estavam voltados para meu leito, o barulho de minha agonia não deixava ninguém dormir. Apenas os sedados tinham esse privilégio.

Em um momento de ausência de minha acompanhante, quis urinar. Uma senhora vendo minha inquietação na cama veio em meu auxílio. Havia duas garrafas com água, pedi que esvaziasse uma. Ela me auxiliou para que urinasse dentro da garrafa. Uma segunda vez a moça ao lado me ajudou.

Entre quatro e cinco da manhã aparece uma enfermeira com semblante exausto, eu disse, por favor, me ajude, já pedi tanto que chamassem vocês, sinto muita dor. Ela respondeu: vou lhe medicar, mas demora mesmo, o hospital esta lotado, tem gente muito mal, bem pior que você, já teve até óbito, esse plantão tá difícil. Eu não duvidava das palavras dela, ela vinha de outras enfermarias em situação pior. Medicou-me e disse: agora vai ar sua dor.

Enfim, consegui dormir. Acordei onze horas, meu irmão já havia deixado roupa, um calção e uma camisa. Logo veio a visita do médico. Eu estava bem, sem dor, sem febre, sem inflamação, sem inchaço. Tá tudo beleza, conforme for hoje ainda lhe dou alta e você vai pra casa.

O médico era muito jovem, eu estava curioso sobre minha cirurgia, o curativo era imenso. Colocou tela doutor? Claro, ai você não terá mais problema. Foi tela completa (todo o baixo ventre)? Não, essa tela custa caro, o SUS não fornece só em casos especiais já programados.

É que o corte parece ser grande. É grande mesmo, você tinha uma infecção, estava cheio de pus, tive que te lavar por dentro, mas dessa você já escapou. Obrigado Doutor, eu ainda tenho muita coisa pra fazer.

Você faz o que? Trabalho com cultura, com arte. Gosta de rock, doutor? Gosto! Gosto de tudo, sertanejo, MPB, rock. Quero lhe enviar uns que fiz. Claro, me entregou a receita que prescrevia e em um pedaço de papel do receituário anotou o seu celular. Tai, pode mandar, e qualquer coisa que sinta me ligue.

Minha cirurgia foi realizada por um jovem médico em residência. Sua receptividade e firmeza foi uma injeção de ânimo. No fim da tarde recebi alta e meu amigo me levou pra casa.

Em pouco mais de um mês retornei ao HMS. Queria visitar Apolinário, artista plástico, escultor, escritor poeta e comunicador. Ele havia retornado dias após cirurgia para retirar uma bala covarde que ao fim lhe assassinou. O irava e o reconhecia como um de nossos grandes artistas.

Dez da noite, fora do horário de visita, conversei com sua esposa, estava apreensiva, enquanto meu irmão falava com um funcionário para tentarmos ver Apolinário, que concordava em nos receber.

Foi combinado que teríamos cinco minutos e entraríamos por outro o, para não causar problema à recepção. Dirigimo-nos ao local e alguns minutos depois o funcionário veio nos buscar, seguimos até ar um corredor, era um dos sombrios labirintos.

Eu não quis prosseguir, pedi que meu irmão dissesse a Apolinário que eu estava ali aguardando por notícias dele. Sentei na pequena recepção do setor sabendo o que Apolinário estava enfrentando.

Meu irmão não voltou otimista, trouxe a noticia que a cirurgia seria logo pela manhã. Depois tive a informação que ocorreu próximo ao meio-dia. No meio da tarde veio a noticia que Apolinário faleceu.

Naquele dia me veio com muita clareza, a certeza que se não fosse o esforço da enfermeira filha de meu amigo, pedindo ajuda, ligando para amigos, permanecendo a meu lado, meu atendimento demoraria um ou dois dias e vivo eu não estaria.

Quem sofre tem pressa. E a doença tem seu próprio cronograma, não vai esperar por um socorro tardio. A precariedade das instalações de nosso hospital, as condições insanas as quais estão submetidos os profissionais, nos revela a negligência, o descompromisso e o descaso com a única opção de socorro para a maioria da população. Que também é a melhor escola de formação profissional de nosso país: O Serviço Público de Saúde.

Não é de hoje e nem da istração Nélio que brincam com a saúde da população. Realizam ampliações que mais parecem remendos, constroem labirintos como se estivessem brincando de jogar Onde está o Wally? Gente sinistra. E não argumentem que é falta de dinheiro, falem em má gestão, em escolha de prioridades. É esse o caso.

Nossa população agora saberá que não é falta de dinheiro, assistirá a sangria de recursos escorrendo para a rede particular de saúde. Nesse exato momento há gente em regozijo, celebrando o maná de verbas públicas a ser servido aos que fazem da saúde o seu negócio.

Muitos são os interesses que convergem para vivenciarmos essa realidade. Grande é a ausência de espírito público e empatia para com a população desassistida. São mais de 25 anos de gambiarras, jogando dinheiro no esgoto da irresponsabilidade. E agentes públicos imunes ao código penal.

Deveria ser constrangedor para prefeito que é médico, ter um hospital municipal nas condições em que o nosso se encontrava. Mas Nélio por vezes parece insensível diante da desgraça alheia. São centenas de denúncias, imbróglio com empresa prestadora de serviços, e o homem nada fez. Agora a bomba caiu no seu colo.

Nélio é o Forrest Gump da política santarena, esse município estratégico para o Pará, o Amazonas, o governo federal e  progressivamente para o estado do Mato Grosso. Por isso, ocupou cargo relevante, na representação dos municípios brasileiros perante o governo federal.

Ele estava disponível quando da separação de Maia e Von. Maia o apadrinhou, sabe Deus a que preço, para enfrentar Von que seria o Bom, mas Maia, que nunca foi bom, elegeu Nélio com os pés nas costas.

Nélio inicia seu governo de coalizão onde se destacam o Arapiuns, a Navegação e o Planalto. Atrelado que esta aos grandes interesses econômicos regionais, à frente o agronegócio e o comercio, torna-se bolsonarista.

Retirada de pacientes do hospital após o incêndio, ocorrido na semana ada

Na sequencia demonstrou habilidade política. Sendo bolsonarista, conseguiu o apoio de Helder, que por sua vez era caçado por Bolsonaro na tentativa de carimbar o governo do Pará como corrupto. Na controversa compra de insumos para o combate a covid19.

Helder precisava de alguém que aderisse sem alusões ao Estado do Tapajós, a sua campanha que é um desejo em conflito com a realidade e um elogio a irracionalidade: “Por Todo o Pará”. Nélio estava no lugar e hora certa, para pegar carona em grandes obras do governo Helder, com o mínimo de contrapartida.

Se Helder fazia oposição a Bolsonaro e apoiaria Lula, não gostaria de ter no estratégico colégio eleitoral da região, um governo que estabeleceria laços naturais com o futuro governo Lula. “Por Todo o Pará” é uma teia que se fortalece na dependência, não na autonomia regional. Lá estava Nélio no local e hora marcada para receber de Helder sua reeleição. Agora vem chegando a hora de a onça beber água.

Nélio Aguiar não é o único responsável por essa tragédia do HMS. Grita a omissão da Câmara de Vereadores, essa fábrica de pamonhas, onde também podemos encontrar bananas.

Há muito abdicaram de seu papel fiscalizador. Fogem de assuntos polêmicos, seja cultura, meio ambiente, patrimônio histórico. Quase todos  ali são base do governo, esse parece ser o grande desejo. É pífio o numero de projetos apresentados. Projetos transformados em lei, esses sim, transformam a vida da população. 

Assistir às sessões da Câmara de Vereadores é desalentador. Por lá eles tem o dia das homenagens, que é o dia do buffet farto. Nos outros dias, o lanchinho é sortido e variado.

As sessões ordinárias são um rosário de pedidos em tom de queixa reivindicatória. Parecendo um bando de meninos pidão, igual aqueles de nossa adolescência na escola. Como se dissessem ao prefeito: se não der o meu docinho vou fazer pirraça nas suas votações.

Nessa casa de ividade apenas dois parlamentares cumprem integralmente com o seu papel fiscalizador, Biga Kalahari e JK do Povão. Exatamente os dois que parte da classe política, a dita inteligenzia, os meios de comunicação alinhados a governos e os preconceituosos tentam folclorizar, descriminar e reduzir as suas dimensões e alcance político.

Nossos deputados são igualmente omissos, olham para o acontecimento pensando nas próximas eleições. Henderson Pinto virou avestruz, enfiou a cabeça no buraco. Agora aparece ao lado do prefeito e logo dirá que virá polpuda emenda parlamentar para a reconstrução do hospital. O esgoto da irresponsabilidade estará com o ralo aberto à espera do próximo improviso.

Maria do Carmo fez um pronunciamento de campanha. Atacou o Nélio, pediu a benção ao Helder, fez o laudo extraoficial apresentando os culpados: Nélio e a empreiteira da última reforma. Como se a sucessão de gambiarras e puxadinhos ao longo dos anos, incluindo os seus oito no poder, não fosse de seu conhecimento.

Seria sério se o presidente de seu partido, irmão e médico, não conhecesse aqueles labirintos. Mais sério ainda se o irmão vereador e médico, de seu partido, também não conhecesse os mesmos labirintos.

Agora anuncia recursos de cinco milhões vindos do governo federal para recuperação do hospital. Qual reforma Maria? Quem fará a gestão dos recursos? O esgoto da irresponsabilidade esta a espera do improviso.

Airton Faleiro, político no qual reconheço grande coerência, foi o mais sensato, se solidarizou com os pacientes e familiares e colocou seu mandato à disposição. Melhor que declarações cínicas e oportunistas.

O PT tem me feito sofrer por vergonha alheia. Ao ter posições claramente à esquerda, defender o voto em Lula e algumas vezes nos candidatos do PT, sou chamado de PTista. A cada vacilo desse partido viro alvo de seus adversários. Aproveito para dizer: não sou PTista, sou filiado ao PSOL.

O que era um filme de terror para quem necessitava do hospital municipal, onde profissionais exerciam suas profissões sem a mínima dignidade e respeito, carregando nas costas, por amor ou por necessidade, o nosso precário sistema de saúde, acaba de ruir.

A reconstrução do nosso HMS não pode ficar ao bel prazer dos políticos. É necessária a mobilização da sociedade e a intervenção do Ministério Público. Conselho Municipal de Saúde, faculdades de medicina, de enfermagem, entidades de classe, médicos, enfermeiros, profissionais da saúde, precisão ser ouvidos e participar do processo de reconstrução. É hora de por fim aos puxadinhos e gambiarras.

Prefeito, a fumaça negra que aterrorizou pessoas debilitadas e indefesas e a fuligem, que agora habita o que outrora foi o excelente e respeitado hospital do Sesp, será seu pesadelo hoje, amanhã e nas próximas eleições.

Paulo Cidmil

Diretor de produção artística e ativista cultural. Santareno, escreve regularmente no portal JC. Ele pode ser visto no…

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