
Nascida na cidade de Cruzeiro do Sul (Acre), tendo ado a maior parte de sua infância em Santarém (PA), a psicanalista e farmacêutica Francielda Queiroz Oliveira é a autora do livro imprescindível para mulheres de modo geral, em particular as que estão vivendo um relacionamento, digamos assim, desconfortável, do tipo ladeira abaixo com a pessoa que fisgou seu coração.
A obra Aquele era um relacionamento abusivo e ela não sabia, lançada pela editora Clube de Autores, é, no mínimo, um convite à reflexão. Ou, se o teu caso é profunda angústia existencial, pode ser lido como uma espécie de tutorial para que você se saia dessa enrascada.
“Há um enfoque [no livro] no relacionamento abusivo, mas também em uma educação quanto a reconhecer os sinais, adquirir autoconsciência, bem como sobre a importância de buscar ajuda, com o autoconhecimento e autoacolhimento, tão necessários para não confundir controle e manipulação com amor”, pontua a autora, que é doutora em educação, com mais de 25 anos de docência.
Em entrevista ao JC, Francielda Oliveira fala sobre o seu livro, esmiuça o que é relacionamento abusivo e aponta caminhos para quem, vivendo essa situação entre quatro paredes, quer dar um basta nela, virando a chave do relacionamento ou, se assim for necessário, por um fim nele.
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O livro Aquele era um relacionamento abusivo… pode ser adquirido aqui. Contato direto com Francielda também é possível pelo telefone 31-992127655.

— Por que algumas pessoas não conseguem enxergar que estão vivenciando um relacionamento abusivo?
∎ Há várias razões. A primeira delas pode estar relacionada à normalização de comportamentos abusivos. Por exemplo, se uma pessoa cresceu em um ambiente onde o abuso era comum ou se teve experiências adas de relacionamentos abusivos, ela pode acabar normalizando ou minimizando comportamentos assim. Isso pode levar à crença de que esse tipo de comportamento é aceitável ou até mesmo esperado em um relacionamento.
Então, o fato de ter tido um lar disfuncional em sua infância e adolescência pode levar a pessoa a normalizar certas atitudes abusivas. Para esse indivíduo, muitas vezes, toda família segue aquele padrão, as brigas, a violência e depois tudo se ajusta com um suposto pedido de desculpa, quando ocorre. E, assim, o ciclo se repete e uma visão distorcida sobre o que seria um relacionamento vai se formando ao longo da vida.
Também posso destacar o controle e a manipulação gradual, pois muitas vezes, relacionamentos abusivos não começam com comportamentos óbvios de abuso. Eles geralmente começam com sinais sutis de controle e manipulação, que podem ser difíceis de detectar no início.
Conforme o relacionamento progride, esses comportamentos podem se intensificar gradualmente, tornando mais difícil para a pessoa perceber o quão prejudiciais são. Pessoas com baixa autoestima ou dependência emocional podem ter dificuldade em reconhecer comportamentos abusivos porque internalizaram a ideia de que não merecem um relacionamento saudável.
Elas podem racionalizar ou justificar o comportamento abusivo do parceiro como sendo culpa delas mesmas. Além disso, muitos agressores tentam isolar suas vítimas de amigos, familiares e outras fontes de apoio. Isso pode tornar mais difícil para a pessoa reconhecer que está em um relacionamento abusivo, pois ela pode estar desconectada de outras perspectivas que poderiam ajudá-la a identificar o abuso.
Para finalizar, é imprescindível a consciência sobre esse tipo de relacionamento, o que pode começar com uma educação do que seria um relacionamento saudável, a fim de que todos possam ficar atentos aos sinais.
— De modo especial, focas o que sobre relacionamento abusivo no teu livro?
∎ No meu livro narro a história de Marina e Paulo, que iniciam um relacionamento intenso em pouco tempo e, ao longo da história, é possível notar alguns estágios desse tipo de relacionamento, desde o início com um bombardeio de amor, em que o homem a a imagem de um príncipe, de alguém que nunca ouviu aquela mulher como ele ouve, ninguém nunca a valorizou como ele valoriza, até os primeiros comportamentos que vão deixando a vítima confusa, visto que ela não sabe se está em um relacionamento abusivo.
Ela começa a tentar justificar certas atitudes e chega a vitimizar o abusador. A história é forte e baseada em vários relatos nos noticiários do dia a dia. Então, há um enfoque no relacionamento abusivo, mas também em uma educação quanto a reconhecer os sinais, adquirir autoconsciência, bem como sobre a importância de buscar ajuda, com o autoconhecimento e autoacolhimento, tão necessários para não confundir controle e manipulação com amor.
Convido o leitor a fazer um eio por essa história, a qual incentiva a uma busca de si mesmo, a um amor próprio, por vezes, abaixo de zero, na jornada. Que seja, um livro a contribuir para a consciência e a superação desse tipo de relacionamento, que seja um instrumento, não de gatilhos, mas de cura e de paz.
— Numa cultura onde o machismo é predominante, é de se supor que as mulheres são as maiores vítimas de relacionamentos abusivos.
∎ Sim. Isso chega a ser histórico. Principalmente por fatores notáveis na sociedade como a desigualdade de poder, é notório que os homens são socialmente e economicamente dominantes e eles, muitas vezes, usam essa estrutura para aprisionar a vítima e a fazer sentir que não existe vida sem ele, visto que ela depende, geralmente, desse homem em vários âmbitos.
As visões culturais de gênero podem reforçar a ideia de que os homens têm o direito de controlar suas parceiras, enquanto as mulheres são socializadas para serem submissas e aceitarem o comportamento abusivo como parte normal de um relacionamento. Tem sido assim ao longo de várias gerações.

As mulheres em culturas machistas podem enfrentar o estigma social e a culpa por saírem de relacionamentos abusivos, o que pode tornar mais difícil para elas, buscarem ajuda ou saírem desses relacionamentos.
Em muitos casos, as mulheres são julgadas pelos “tribunais populares” da sociedade como as erradas da situação, pois se sofreram abuso, foi por alguma coisa que elas mesmas fizeram. Elas mereceram, dizem alguns!
— A mulher europeia em tese, por questões culturais, seria menos sujeita a relacionamentos abusivos?
∎ É difícil generalizar sobre a incidência de relacionamentos abusivos com base na cultura ou na nacionalidade das mulheres. Embora as atitudes em relação ao gênero e ao relacionamento possam variar de uma cultura para outra, o abuso pode ocorrer em qualquer parte do mundo e em qualquer cultura. Então, não há como dizer que a mulher europeia seja menos sujeita a relacionamentos abusivos.
Em muitos países europeus, houve avanços significativos na conscientização sobre violência doméstica e no desenvolvimento de recursos para ajudar as vítimas. No entanto, isso não significa que o problema seja completamente eliminado. Existem fatores culturais, sociais e individuais que podem influenciar a prevalência e a percepção do abuso.
É importante reconhecer que o abuso pode acontecer em qualquer contexto cultural e que as mulheres em todos os lugares podem estar em risco. É fundamental fornecer apoio e recursos às vítimas, independentemente de sua origem cultural ou nacionalidade.
Na Europa, a violência doméstica é um grande desafio, o que é consequência de relacionamentos abusivos, por vezes velados. Em Portugal, os números de casos são expressivos. Na Finlândia, mesmo sendo considerado um dos países mais felizes do mundo ainda é um grande desafio lidar com a violência doméstica, consequentemente relacionamentos abusivos. Dados mais recentes do governo finlandês mostram que a violência doméstica cresceu 21% entre 2021 e 2022.
Mas, o que se pode dizer é que a Europa vem investindo em campanhas educativas, como a que foi realizada em 2021, #não é amor, a fim de conscientizar sobre relacionamentos abusivos, direcionada principalmente às mulheres.
Em 8 de março de 2022, a Comissão Europeia propôs uma nova diretiva relativa ao combate à violência contra as mulheres e à violência doméstica. A proposta visa a assegurar em toda a UE um nível mínimo de proteção contra este tipo de violência.
— O relacionamento abusivo tendo como vítima homens é raro?
∎ O relacionamento abusivo pode afetar qualquer pessoa, independentemente do gênero. Embora seja mais comumente associado a mulheres como vítimas, os homens também podem ser vítimas de relacionamentos abusivos.
No entanto, há muitos desafios únicos que os homens enfrentam ao lidar com o abuso, incluindo estigmas sociais, dificuldades em reconhecer o abuso, devido a normas de gênero e dificuldades em encontrar apoio. Devido a esses fatores, o abuso contra homens pode ser subnotificado e subestimado em comparação com o abuso contra mulheres, mas isso não significa que seja raro.
É importante reconhecer que o abuso pode ocorrer em qualquer direção e que todas as vítimas merecem apoio e recursos para sair de situações abusivas. Isso ainda é um tabu e precisa, igualmente, de conscientização.
Quando se pesquisa sobre relacionamento abusivo, quase 100% dos resultados trazem a mulher como a vítima. Isso se dá porque 3 a cada 5 mulheres brasileiras sofrem abuso dentro das relações, e elas ganham cada vez mais visibilidade através da mídia e das próprias denúncias. Devido à cultura de que apenas mulheres sofrem relacionamentos abusivos, existe uma grande dificuldade entre os próprios homens de se reconhecer dentro deste tipo de relacionamento.
— Por fim, o que você diria a uma pessoa imersa num relacionamento abusivo e que se quer livre dessa situação?
∎ Eu diria: você não está sozinho(a). Você merece ser tratado(a) com respeito e dignidade. Busque ajuda e apoio de amigos, familiares ou profissionais especializados, é possível vencer e resgatar a identidade e o amor próprio.
Lembre-se de que há esperança e opções para uma vida livre e segura. Gostaria de encerrar com um texto que escrevi para um programa de rádio na Bahia, que depois se transformou em vídeo e faz parte do meu livro. Faço questão de ressaltar que no livro conto a história de um relacionamento heteroafetivo, mas tudo que abordei ali pode se estender a qualquer tipo de relacionamento abusivo, seja de que gênero for, ninguém merece viver sob a manipulação e o medo. Convido ao autoconhecimento e autoacolhimento, nem sempre fáceis, requerem coragem, é um processo, mas são fundamentais para uma vida saudável.
“É preciso meter a colher na ignorância, na prepotência, no machismo e na violência.
É preciso tirar o nó da garganta, desatar as amarras do medo, da vergonha, da dor.
Ali vem ela, com um sorriso amarelo, com um roxo nos olhos, com uma mancha na alma, com uma ferida que quase ninguém vê.
Mete a colher, mete a coragem, mete o empoderamento e não esquece que tem identidade, amor próprio e que ainda há esperança.
Ali vem ela, que precisa de mãos estendidas e menos dedos apontados. Que precisa voltar a enxergar que ainda existe amor e cuidado.
Mete a colher na truculência e avisa ao coração que é necessário seguir em frente, sim, ali vem ela que não consegue meter a colher, então alguém tem de ser essa mão, que ajude a dizer Não a todo e qualquer tipo de violência contra a mulher!”

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Parabéns, excelente entrevista, muito esclarecedora.
Perfeita a entrevista,mostra como a autora tem uma sensibilidade ao abordar o assunto!!