A vida vazia de Enzo com a queda do Facebook e WhatsApp. Por Silvan Cardoso

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A vida vazia de Enzo com a queda do Facebook e WhatsApp. Por Silvan Cardoso
Redes sociais: a vida vazia de Enzo. Foto: Reprodução

A tarde estava apenas começando. Era a primeira segunda-feira do mês de outubro. Depois do almoço, Enzo trancou-se em seu quarto e ou a mexer no seu celular. Não quis contato com mais ninguém. Nenhum contato próximo, cara a cara. Apenas à distância. Somente virtual.

Deitado em sua cama, ava Facebook, olhava algumas publicações e saía para olhar o que tinha de mensagem no WhatsApp. Depois retornava ao Facebook. Minutos depois voltava ao WhatsApp. Continuou agindo dessa forma até que em certo momento percebeu que nem Facebook e nem WhatsApp continuaram a funcionar.

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Começou a ficar incomodado. Perdeu as contas de quantas vezes utilizou o modo avião. Nenhum sucesso. Olhou para o roteador e achou que o problema estava nele. Desligou e ligou o aparelho e depois mexeu nos fios que faziam as conexões. Em nada resultou.

Permaneceu mais alguns minutos deitado e imóvel sobre a cama. Preferia continuar sentindo o frio do ar-condicionado à temperatura de fora. Mas teve um momento que precisou sair do quarto. Após mais tentativas inúteis de ar as redes sociais, levantou-se e destrancou a porta. Abriu-a lentamente e saiu com cautela do quarto. Em momento algum largava o celular, que continuava firme em suas mãos. Caminhou até a cozinha e não viu ninguém. Bebeu um copo com água e olhou novamente para o celular.

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O que o intrigava bastante era o fato de ver “4G” de Internet no seu aparelho, mas não conseguir utilizar as redes sociais. Aquilo já estava fazendo ele perder a paciência. “O que está acontecendo?”, perguntou pra si mesmo mais uma vez. Não estava vendo ninguém na casa. Nem seus pais e nem seus irmãos eram vistos. Onde estariam?

No celular, verificou se as mensagens tinham sido enviadas. Nada até então. Reiniciou o celular. Assim que o aparelho ligou, colocou e tirou do modo avião e, por fim, ligou o Wi-Fi. Mas continuava do mesmo jeito. ou a mão no rosto e começou a ficar revoltado com aquela situação.

Andou de quarto em quarto e não viu ninguém. Seguiu até a sala e viu apenas o televisor ligado. Sentou-se no sofá e, ignorando o que ava de programa televisivo, ficou olhando a galeria do seu telefone. Nem os livros de Mário Quintana, de Maria José Dupré ou de Dalcídio Jurandir sobre uma cadeira chamavam a sua atenção. Ele não gostava de livros. Então, fechando os olhos, tentou cochilar. Instantes depois ouviu vozes. Eram vozes bastante conhecidas. “Papai? Mamãe? Irmãos?”, disse alegre. Eles estavam na frente da casa, todos juntos. Eles estavam conversando.

Enzo não quis conversar. Não gostava de conversar. Não desejava se juntar a eles. Não tinha o menor interesse de trocar palavras naquela roda de conversa. Não usava a imaginação para trocar ideias e pensar em coisas boas. Ele não raciocinava.

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O rapaz era dominado pelas novas tecnologias, que o hipnotizava o dia inteiro. Voltou ao sofá e deitou-se novamente. Mas antes que ele fosse dormir, percebeu o noticiário da TV que falava que o WhatsApp e o Facebook estavam em pane em vários lugares do mundo. Viu que o problema não era a Internet e sim as redes sociais. Viu que o problema não era só no telefone dele. “De novo?!”, pensou sozinho. Recordou que não era a primeira vez que essa pane global acontecia.

Aquilo não estava parecendo real pra ele. Mas era real, por mais que recusasse. Que agonia estava sentindo! Estaria com medo ou com raiva? É como se sua vida estivesse inteiramente dentro do celular. É como se toda a sua vida dependesse do smartphone.

Outras pessoas, aproveitando a queda das redes sociais, reuniram-se e ficavam trocando ideias compartilhando diálogos ou mesmo brincando. Houve quem retornasse aos livros, aos filmes e ao rádio. Qualquer tipo de diversão que envolvia contato físico e próximo. Menos Enzo.

Ele só queria mexer no seu aparelho em paz, tranquilo e satisfeito. Mas já estava exausto de tanto esperar. Não queria mais perder muito tempo com aquilo. Viu que a internet funcionava sem nenhum problema. Mas esses outros meios de o que não foram afetados pela pane não interessavam a ele. Ele só queria saber se suas mensagens tinham sido enviadas ou se tinha recebido mensagens de alguém.

O tempo foi ando e só faltava ele arrancar os próprios cabelos de tanta impaciência. Só faltava ele socar a parede, ar mal ou discutir com alguém por conta dessa situação. As horas foram seguindo e seu maior medo era não mais ar as redes sociais durante o que restava do dia.

E se isso se entendesse para o dia seguinte? A tarde ava acompanhada do medo e da incerteza do jovem de 15 anos. Sua vida estava limitada ao pequeno aparelho. Nada mais era tão importante em sua vida. E a pane era a principal notícia nas páginas de jornais e nas conversas de muitas pessoas. O desesperado sentia-se dependente por inteiro do celular, do Facebook e do WhatsApp. Voltaria tudo ao normal antes que ele cometesse uma tragédia consigo mesmo?

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Horas de um sofrimento sem fim, incômodo e preocupante. Enzo não queria que aquilo fosse real. Não desejava que alguém asse pelo que ele estava ando.

Até que, enfim, tudo foi voltando ao normal. Conseguiram recuperar o Facebook e o WhatsApp. Lentamente, com oscilações, mas foram voltando. As mensagens que ele tinha enviado chegaram ao seu destino. Muitas outras mensagens mandadas por outras pessoas chegaram pra ele.

Respirou fundo, agradeceu a Deus e procurou ar as redes sociais e aplicativos. Seu sofrimento foi deixado de lado. Enquanto seus parentes continuavam conversando pessoalmente, mesmo sabendo que não havia mais pane, Enzo, agora com vida, imediatamente correu até o seu quarto, trancou-se, colocou o celular pra carregar e, ao mesmo tempo, deitou-se na cama, mexendo nas redes sociais, em seu silêncio, em sua paz, em sua distância e nessa inexplicável dependência de Internet que fazia dele um ser minúsculo diante de um mundo tão imenso a ser redescoberto.

<strong>Silvan Cardoso</strong>
Silvan Cardoso

É poeta, cronista e pedagogo nascido em Alenquer, no Pará. Escreve regularmente no BJ.


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