
Esta semana, a Academia de Ciências da Suécia divulgou os agraciados com o Prêmio Nobel de Fisiologia e Medicina de 2021: os pesquisadores David Julius, professor da Universidade da Califórnia, em San Francisco, e Ardem Patapoutian, pesquisador de origem libanesa, e professor do Instituto de Pesquisa Scripps, em La Jolla, na Califórnia.
Os pesquisadores desvendaram os mecanismos neurais de como estímulos físicos são transformados em sinais elétricos que são levados ao cérebro para que possamos ter as sensações de dor, temperatura e toque (sensação tátil).
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Existem duas vias neurais que levam informações sensoriais ao cérebro: a via da coluna dorsal lemnisco medial (VCDLM) e a via anterolateral (VAL). A primeira leva ao cérebro informações precisas sobre tato e propriocepção (percepção espacial do corpo), ou seja, um tipo de informação onde conseguimos dar detalhes do objeto que estamos tocando, mesmo com os olhos fechados.
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Por exemplo, se fecharmos os olhos e colocamos uma colher em uma das mãos, conseguimos, ao tocá-la, saber que é uma colher. Existem pequenos receptores distribuídos na pele das mãos, pequenos corpúsculos, que disparam um tênue sinal elétrico que trafega pelos nervos periféricos, entra na medula espinhal e a por diferentes regiões do cérebro até chegar ao córtex cerebral, a região na superfície do cérebro que faz o processamento final da informação neural nos permitindo sentir e saber o significado do que sentimos.
A propriocepção é a capacidade de sabermos que partes do nosso corpo pertencem a nós mesmos. Algumas pessoas que têm acidente vascular cerebral (AVC) em algumas áreas do córtex somestésico, a parte do cérebro que avalia os estímulos sensoriais, podem acordar durante a noite dizendo que uma das pernas não pertence a ela. Isso se chama heminegligência sensorial e indica perda de propriocepção.
A VAL possui receptores chamados terminações nervosas livres que, quando ativadas, levam ao cérebro informações sobre dor e temperatura. O trajeto desta via neural é um pouco diferente da anterior, mas os neurônios do córtex que processam essa informação sobre dor e temperatura estão no mesmo giro cortical, uma região chamada giro pós-central, no lobo parietal do cérebro.
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Os receptores que transformam estímulos físicos, como tato, estímulos de dor, temperatura, luz, som, estão distribuídos por todo o corpo e são um tipo de transdutor biológico. Em tecnologia, um transdutor é um aparelho que transforma uma forma de energia em outra.
Por exemplo, na retina, uma camada neural que fica no fundo dos olhos, transdutores visuais (cones e bastonetes) transformam uma pequena imagem invertida em uma série de sinais elétricos que vão para o cérebro, uma região chamada córtex visual, para que nós possamos ver e entender o que vemos. No ouvido interno, transdutores auditivos chamados células ciliadas, transformam o som, uma onda mecânica (precisam de um meio para se propagar), em atividade neural (impulso nervoso) que é direcionada para o córtex auditivo que fica localizada em uma região chamada córtex temporal.
Dessa forma, o cérebro cria um modelo de realidade, pois usa os estímulos físicos do ambiente para nos informar sobre o mundo que nos cerca.
Assim, nós vemos, ouvimos, sentimos o cheiro e o gosto das coisas. Imaginem alguém em uma peixaria comendo uma bela caldeirada de tucunaré. São cinco pessoas em uma mesa. Duas delas pedem pimenta. Colocam a mesma quantidade no prato, mas uma delas pede logo água por achar a pimenta muito forte, enquanto que a outra não sente nada e ainda quer mais pimenta. Por que isso acontece?
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A resposta está no fato de que existem transdutores na língua, uma espécie de receptor de pimenta, que transforma o estímulo físico das moléculas de pimenta em atividade elétrica biológica que vai ser direcionada para o cérebro para que a pessoa sinta o gosto da pimenta. A pessoa que tem mais receptores de pimenta, chamado de receptor de capsaicina, sente mais os efeitos dela na caldeirada, no exemplo relatado. Por exemplo, o pimentão não arde porque ele não produz capsaicina, portanto, não ativando os seus receptores.
O pesquisador David Julius usou vários estímulos como a capsaicina e várias toxinas, como o veneno de tarântula, e descobriu que eles podem ativar receptores específicos que veiculam informações de dor e temperatura, bem como outras sensações como o ardor da pimenta malagueta. Quando ativados, estes receptores abrem canais iônicos (pequenas proteínas que deixam ar íons) que permitem a transformação dos estímulos físicos em atividade elétrica biológica que acaba indo para o cérebro, como anteriormente mencionado. Isso não era conhecido antes do trabalho de David Julius.
O pesquisador Ardem Patapoutian usou outros estímulos físicos, como o mentol, para descobrir outros receptores de temperatura e de estímulos táteis, desvendando ainda mais os mecanismos da transdução sensorial, ou seja, de como os estímulos físicos são transformados em impulso nervoso. Ele chamou esses receptores de TRPV1, TRPM8, Piezo1 e Piezo2.
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Com os estudos mencionados David Julius e Ardem Patapoutian nos ensinaram mais um segredo da natureza e nos mostraram que a nossa compreensão da realidade física que nos cerca depende de receptores presentes na pele, nos ossos e em outras partes do corpo. Este conhecimento pode transformar-se em terapias para doenças onde ocorre dor crônica, por exemplo, minimizando o sofrimento das pessoas. O sistema nervoso é o nosso portal para o mundo. A realidade é ditada pela função cerebral.
Leitura sugerida
Caterina MJ, Schumacher MA, Tominaga M, Rosen TA, Levine JD, Julius D. The capsaicin receptor: a heat-activated ion channel in the pain pathway. Nature 1997:389:816-824.
Caterina MJ, Leffler A, Malmberg AB, Martin WJ, Trafton J, Petersen-Zeitz KR, Koltzenburg M, Basbaum AI, Julius D. Impaired nociception and pain sensation in mice lacking the capsaicin receptor. Science 2000:288:306-313
Coste B, Mathur J, Schmidt M, Earley TJ, Ranade S, Petrus MJ, Dubin AE, Patapoutian A. Piezo1 and Piezo2 are essential components of distinct mechanically activated cation channels. Science 2010:330: 55-60
McKemy DD, Neuhausser WM, Julius D. Identification of a cold receptor reveals a general role for TRP channels in thermosensation. Nature 2002:416:52-58
Peier AM, Moqrich A, Hergarden AC, Reeve AJ, Andersson DA, Story GM, Earley TJ, Dragoni I, McIntyre P, Bevan S, Patapoutian A. A TRP channel that senses cold stimuli and menthol. Cell 2002:108:705-715
Ranade SS, Woo SH, Dubin AE, Moshourab RA, Wetzel C, Petrus M, Mathur J, Bégay V, Coste B, Mainquist J, Wilson AJ, Francisco AG, Reddy K, Qiu Z, Wood JN, Lewin GR, Patapoutian A. Piezo2 is the major transducer of mechanical forces for touch sensation in mice. Nature 2014:516:121-125
Tominaga M, Caterina MJ, Malmberg AB, Rosen TA, Gilbert H, Skinner K, Raumann BE, Basbaum AI, Julius D. The cloned capsaicin receptor integrates multiple pain-producing stimuli. Neuron 1998:21:531-543.
Woo S-H, Lukacs V, de Nooij JC, Zaytseva D, Criddle CR, Francisco A, Jessell TM, Wilkinson KA, Patapoutian A. Piezo2 is the principal mechonotransduction channel for proprioception. Nature Neuroscience 2015:18:1756-1762
Meus parabéns ao Blog do Jeso e ao prof. Dr. Wallace Gomes (UFOPA) pela oferta deste canal de divulgação científica para a sociedade santarena e de nossa região do Oeste Paraense. Temos aqui um nova oportunidade de colocar a agenda científica em pauta e resgatar nossa identidade e vivência acadêmica, tal como faz jus a essa maravilhosa cidade universitária, nossa adorada Pérola do Tapajós.
Parabéns, principalmente, ao professor Walace Leal. Mais do que nunca, o país, o Pará, e região, Santarém precisa se contrapor ao negacionismo em voga. Oportuno contraponto do professor.