És tu, pró?

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És tu, pró?, Caminhada das Flores em Brasiliaeata de mulheres em Brasília contra a cultura do estupro

por Josué Vieira (*)

josué vieiraNum tempo em que as ações de divertimento é pagar de 15 a 30 reais para entrar numa câmara escura, sentar numa poltrona confortável e, com os olhos vedados por um óculos 3D, apreciar uma sociedade onde Hulk arrebenta com sua “força sobre-humana” arquiteturas urbanas; onde Homem-de-Ferro explode com um alta tecnologia militar maquinas “inimigas”; e, Capitão América desvenda tramas imperialistas mirabolantes, parece ser natural debitar toda conta moral e social do estupro na costa da vitima feminina, e estabelecer a expressão “cultura do estupro” a definição mais limpa e concisa para o que ocorreu com duas jovens na semana ada, uma em Piauí e outra no Rio de Janeiro, isso porque foram divulgados.

Leia também do autor – Rir-tualismos

O caso do Rio de Janeiro se tornou exemplar porque atingiu picos máximos de espetacularização do mal, porque trouxe à tona uma nova forma de materializar Eichmann, porque foi o fato mais completo já catalogado em tempo real pelos algozes em termos de “banalidade do mal” (Hannah Arendt).

Estuprada por mais de 30 homens a mando de um traficante que se outorgou dono da vítima, esse estupro é peculiar, é específico porque revela como facções e firmas de traficantes consolidam como medida de controle social nas comunidades um ethos da masculinidade combinado com a falta de limites para a maldade.

Arquitetado, filmado e exposto nas redes sociais, esse tipo de estupro traz no bojo outros tipos do mesmo ato comum dentro das famílias, nos locais de trabalho e nas ruas. Encobertos muitas vezes pelo “bom-senso” imposto à vitima e a sua família.

Se o que aconteceu com a menina não tivesse ado por todos esses estágios específicos, nada saberíamos ou quando soubéssemos não teríamos coragem de denunciar, porque a menina era “mulher da boca”, já era “ada na casca do alho” e nem deveríamos nos preocupar porque ela estava tendo o que mereceu já que se meteu com mais um vagabundo dentre outros em sua vida, por isso ela tinha de dar para todos da “firma”, carregando o estigma da “viúva da janela” e o ado de Madame Hortense como cortesã, personagens de “Zorba, o grego”.

Se formos pensar em uma “cultura do estupro” estaríamos considerando como predeterminantes a exposição cultural da masculinidade e o pensamento moral conservador?

Uma pesquisa realizada pelo IPEA em 2013 revelou que 26% dos informantes concordam parcialmente ou total com a afirmação de que “mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas” e 58,5% concordaram com o pensamento “se as mulheres soubessem como se comportar, haveria menos estupros”.

Contratado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), o Datafolha realizou pesquisa em 2014 em 84 municípios com mais de 100 mil habitantes em que revelou que 67% da população pesquisada possui medo ou receio de sofrer agressão sexual.

O 9º Anuário Brasileiro da Segurança Pública produzido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) afirma que no Brasil um caso de estupro é notificado a cada 11 minutos.

Dados do Sistema de Informações de Agravo de Notificação do Ministério da Saúde (SINAN-MS) entre 2011 e 2015: 70% dos registros das vítimas de estupro no Brasil são crianças e adolescentes, em que 15% desses registros envolvem dois ou mais agressores.

Em 2013, 47,6 mil pessoas foram estupradas, das quais 30% apenas registraram boletim de ocorrência, numa projeção pode-se afirma que naquele ano um estupro era cometido a cada minuto no Brasil, segundo o FBSP.

De acordo com o SINAN-MS, 89% das vitimas que realizaram ocorrência perante as autoridades de policia são do sexo feminino com baixa escolaridade, desse total 24,1% dos agressores são pais ou padrastos e 32,2% são amigos ou conhecidos da vitima.

Conforme pesquisa do IPEA, datada em 2011, 70% dos estupros são cometidos por parentes, namorados, amigos/conhecidos da vitima, o perigo dorme ao lado…

Casos como do Rio de Janeiro e do Piauí tornam-se emblemáticos não só pela sagacidade praticada pelos agressores, mas porque são fagulhas visíveis no meio de um grande quantitativo de casos que endossam mais e mais as cifras negras desse crime que a “cultura do estupro” deixou ar.

Isso porque só estamos nos referenciando ao crime registrado, do dado notificado à autoridade policial, porque se formos adentrar na esfera judiciária a tipificação do crime de estupro parecerá apenas um adorno simbólico, porque são pouquíssimos casos que chegam aos status de transitado julgado, demonstrando a existência de uma “vitimização oculta”.

Sustentamos essa barbárie, apoiamos direta ou indiretamente a consolidação da “cultura do estupro”, cultura que nascente no ethos da masculinidade combinada com a banalidade do mal. Em todo caso, devemos rever nossos caminhos, devemos tirar o óculos 3D que impede da realidade, por isso És tu, pró?

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* Santareno, é professor universitário em Manaus. Escreve regularmente neste blog.


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Santareno, é poeta e escritor, além de professor universitário. Escreve regularmente neste blog.

3 Responses to És tu, pró?

  • Nem vou entrar no mérito dessas estatísticas, pq é meio complicado explicar como foram levantados os casos sem registro oficial e tbm ñ quantificou a percentagem das ações com trânsito em julgado, para avaliar essa insinuação da justiça compactuar com o crime. Mas isso de lado, essa tal de “cultura do estupro” dá a entender q todo brasileiro tem um estuprador, ali, bem ali no seu interior, esperando uma oportunidade para atacar uma presa indefesa. Por essa lógica, pq ñ, o próprio autor ñ ter esse selvagem temporariamente celado nas profundezas da sua personalidade? Essas generalizações de que todo brasileiro é um estuprador em potencial é manchete pra chocar! Decisões individuais são camufladas nessa cegueira de que a sociedade em geral é responsável pela barbárie das pessoas como indivíduos. Uma pessoa pode ñ acreditar na eficácia da justiça, mas a decisão de cometer o crime é dele. Só pra constar, que esses crápulas q cometeram esse crime apodreçam na cadeia, só pra patrulha não insinuar q aceito uma selvageria dessas e tbm, ñ importa o q a menina fazia ou quem era, o q fizeram é inaceitável e injustificável!!!

    1. Crimes sexuais: a impunidade gerada por um Estado omisso

      POR CONGRESSO EM FOCO | 07/06/2016 17:19

      Hélio Buchmüller *

      Os últimos dias foram tomados por um assunto que deveria, há muito, estar extinto em uma sociedade que se pensa moderna. Um caso inimaginável expôs um fenômeno para o qual muitos tentam desviar o olhar: os casos de estupro no Brasil.

      Há muito o que se fazer para a reversão desse cenário, principalmente em relação à educação e difusão de valores éticos. Contudo, é inegável que a impunidade desses crimes, decorrente da omissão do Estado, é preponderante para que tenhamos o número tão absurdo de casos de estupros em nosso país.

      Não precisamos de grandes cálculos para perceber o rastro de impunidade que o crime de estupro deixa no Brasil. Segundo o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen), havia em junho de 2014 pouco mais de 12.800 pessoas presas por crimes contra a dignidade sexual. Em um cálculo conservador, podemos considerar que uma pessoa condenada por estupro cumprirá, no mínimo, dois anos de período de reclusão. Em 2013 e 2014, foram registrados, respectivamente, 51.090 e 47.646 casos de estupros. Temos, dessa forma, que os pouco mais de 12.800 correspondem a cerca de 13% das ocorrências de crimes sexuais em dois anos. Se considerarmos a estimativa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) de que a ocorrência de estupros pode ser até dez vezes maior do que o total notificado, teríamos algo próximo a 1% de punição. Isso mesmo, caro leitor, o índice de condenação em crimes sexuais é próximo a 1%!

      São números aproximados, claro, pois não consideram a reincidência, que por um lado reduziria o número de criminosos em relação ao de casos, mas por outro lado aumentaria a pena e, por consequência, o período a ser considerado (que deveria ser maior do que dois anos). Há também uma carência de outros dados fidedignos, como porcentagem de presos provisórios, entre outros. De qualquer maneira, apesar da imprecisão, o cálculo assusta e explica a sensação geral de impunidade no Brasil.

      Esse sentimento gera um automático clamor pelo aumento de penas. E essas propostas surgem em profusão no Congresso Nacional. Contudo, parece ser um equívoco imaginar que um criminoso, ao enxergar uma probabilidade mínima de ser punido, deixará de praticar o crime pelo aumento da pena. Com uma taxa de condenação próxima de 1% nos casos de estupro, o aumento da pena pode não ser uma ameaça real ao criminoso.

      Não é recente o entendimento de que a frequência da punição é mais importante do que o rigor da pena. Beccaria, ainda no século XVIII, trazia o conceito de que a perspectiva de um inevitável castigo, mesmo que moderado, terá mais efeito do que o temor de uma pena de rigor extremo, porém de cumprimento improvável.

      Mais recentemente, o economista ganhador do Prêmio Nobel, Gary Becker, em seu clássico artigo “Crime e castigo: uma abordagem econômica”, traduziu em equações e números a expectativa para uma política criminal mais eficiente, analisando a relação probabilidade/severidade da punição. A partir do modelo proposto por Becker, a economista Jeniffer Doleac, da Universidade da Virgínia, EUA, avaliou diferentes abordagens de política criminal. Em publicação recente, a pesquisadora mostra que o custo estimado para se evitar um crime grave utilizando a estratégia de aumentar a pena é cerca de US$ 7,6 mil. Para atingir o mesmo fim por meio da contratação de mais policiais, o custo fica entre US$ 26 mil e US$ 62 mil. Impedir um crime grave alimentando o banco de DNA, tecnologia largamente utilizada em países desenvolvidos, custa US$ 555. Claro que esses valores têm como referência a realidade de custos nos Estados Unidos, mas a diferença não deixa dúvidas da importância de implementar novas tecnologias e usar a ciência para elucidação e prevenção de crimes, sem prejuízo das outras estratégias.

      Os números são amplamente favoráveis à ampliação do uso do banco de dados de DNA como política criminal prioritária. Na Inglaterra, por exemplo, a taxa de elucidação de crimes cresce muito quando da utilização desta ferramenta. O último relatório do Banco Nacional de Dados de DNA do Reino Unido (NDNAD, na sigla em inglês) mostra que 63,2% dos vestígios coletados em local de crime que são inseridos no banco de dados de DNA coincidem com algum indivíduo previamente cadastrado naquele mesmo banco. É uma taxa extraordinária se considerarmos que se trata de apenas uma ferramenta, entre as várias que estão à disposição dos órgãos de investigação.

      O Brasil é um dos mais de 60 países que utilizam o banco de dados de DNA como ferramenta de investigação. A Lei 12.654/2012 prevê a identificação do perfil genético de condenados por crimes hediondos e violentos contra pessoa, bem como quando a identificação for essencial às investigações, segundo despacho da autoridade judiciária competente. Contudo, sua aplicação ainda está muito aquém do que se espera de um país com vergonhosas taxas de crimes violentos. O relatório semestral de novembro de 2015 da Rede Integrada de Bancos de Perfis Genéticos mostra que apenas 819 indivíduos estavam cadastrados nos bancos de dados criminais estaduais e federal – dados a serem atualizados nos próximos dias. Perto dos mais de 14 milhões dos EUA e cerca de 6 milhões no Reino Unido, os números brasileiros ainda são pífios.

      As autoridades, em particular as governamentais e do Poder Judiciário, devem criar os meios para a reversão desse quadro. O Brasil já tem uma rede de laboratórios oficiais de genética forense capazes de realizar exames de alta complexidade, mas são necessários ainda investimentos para aumentar a capacidade de processar maior número amostras criminais. Os juízes, especialmente de Varas de Execução Penal, devem garantir o cumprimento da lei, bem como propor outras medidas, como a exigência de cadastro em banco de dados de DNA para progressão de regime.

      Esse é um investimento que a experiência internacional demonstra que vale a pena. Não podemos ficar para trás. Mais ciência, menos burocracia.

      * Biólogo e doutor em Ciências, Hélio Buchmüller é perito criminal federal e presidente da Academia Brasileira de Ciências Forenses.

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