por Célio Simões (*)
Mês ado, o povo santareno foi surpreendido com a notícia de que a Cosanpa estaria cogitando negativar o nome dos devedores de consumo de água nos órgãos de proteção de crédito, notadamente o SPC ou a Serasa, em face da elevada inadimplência, atualmente beirando a metade dos haveres a serem recebidos.
Segundo os prepostos da empresa, os estudos para a viabilidade dessa medida extrema estaria a cargo do seu serviço jurídico, incumbido de opinar sobre a viabilidade do procedimento, que sabemos todos provocará virulenta reação das pessoas atingidas, que ariam a sofrer severas restrições em sua capacidade de crédito, afora a mancha imposta ao próprio nome.
Pelo que li a respeito, as lideranças de (muitos) bairros e outros segmentos representativos da população protestaram de forma incisiva contra aquela pretensão, dentre todos e com maior destaque, alguns dignos vereadores da Câmara Municipal, via de regra atentos e empenhados na solução dos reclamos da população, chegando mesmo os edis a propor o desate contratual entre a PMS e a COSANPA, justificado pelo ostensivo descumprimento dos serviços a que esta se obrigou: o fornecer água de boa qualidade aos moradores de Santarém.
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Penso que muita ponderação deverá prevalecer entre os membros do departamento jurídico da COSANPA antes de liberarem a superior istração da Companhia a lançar na lista negra quem está em débito com as faturas de água.
Não é minha intenção esgrimir neste rápido esboço qualquer argumento em favor de devedores contumazes e recalcitrantes, desde que tenham tido eles à disposição, ontem como hoje, o chamado precioso líquido jorrando em abundância em suas torneiras.
Salvo melhor juízo, não é isso que vem acontecendo.
A regra parece ser a constante escassez desse bem da vida sem o qual se instala nos lares o caos, pois sem água ninguém vive, salvo os que optaram por mourejar à beira dos rios, lagos e igarapés das várzeas amazônicas, que previamente sabedores dessa condição antes de fixarem sua morada, não podem culpar ninguém.
Antes de negativar qualquer devedor, é aconselhável que a Cosanpa proceda a uma meticulosa e isenta verificação, se do ponto de vista legal não estará dando um tiro no pé, eis que “sujar” o nome de uma pessoa nos órgãos de proteção ao crédito, pressupõe de plano que o credor cumpriu de forma escorreita sua parte no contrato.
E a Cosanpa cumpriu?
Trata-se de uma premissa básica a motivar a defesa do devedor, qual seja, a exceção do contrato não cumprido, um dos mais significativos princípios da relação contratual, prevista no art. 476 Código Civil, onde resta consagrado a aplicação da boa-fé objetiva que rege os contratos bilaterais, onde os contratantes ficam vinculados por deveres e direitos.
Reza o aludido art. 476/CC que ”NOS CONTRATOS BILATERAIS, NENHUM DOS CONTRATANTES, ANTES DE CUMPRIDA A SUA OBRIGAÇÃO, PODE EXIGIR O IMPLEMENTO DA DO OUTRO”. Essa norma tem aplicação se as prestações são simultaneamente exigíveis nos contratos bilaterais de execução continuada mediante contrapartida, como é a hipótese do pagamento da fatura, ante o regular fornecimento da água.
Aqui cabe uma observação, no sentido de que qualquer pacto seja tácito ou expresso, precisa deixar expresso ou claramente implícito a quem cabe cumprir primeiro a obrigação, no tema em debate a COSANPA, que assim se legitima para exigir o pagamento pelo consumo. Talvez aqui resida um involuntário deslize da Companhia, ao deixar de enxergar o destinatário de seus serviços como consumidor, ao qual é aplicável as normas protetivas do CDC (Código de Defesa do Consumidor).
É comum pensarmos no Direito do Consumidor a partir da relação travada entre partes contraentes no âmbito privado. Talvez pela circunstância do cidadão buscar na iniciativa privada a satisfação de muitas necessidades cotidianas, há como que uma tendência natural a associar o estudo do subsistema jurídico consumerista ao fornecedor que atua no mercado na prestação de serviços privados.
Surge, a partir daí, um primeiro problema de ordem técnica. O legislador brasileiro não pretendeu restringir o conceito de fornecedor. Pelo contrário, quis ampliá-lo, de modo a abranger a pessoa privada, mas abrange também a pública, como revela o caput do art. 3º do CDC: “Art. 3°. Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços”.
O dispositivo é muito claro ao adjetivar a pessoa do fornecedor: física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira. Até mesmo os entes desprovidos de personalidade jurídica são considerados fornecedores, com vistas a autorizar a incidência do CDC.
Dessa maneira, nota-se a amplidão do conceito de fornecedor na legislação consumerista, que não pode ficar adstrito às pessoas naturais ou jurídicas prestadoras de serviços privados. Em outras palavras: as regras previstas na Lei 8.078/90 (CDC) aplicam-se também à prestação de SERVIÇOS PÚBLICOS.
A garantia constitucional dos direitos fundamentais, ao assegurar a dignidade da pessoa humana, é tema de extrema importância na sociedade. As cláusulas gerais previstas no Código Civil possibilitam a maior liberdade na interpretação da legislação.
O Superior Tribunal de Justiça trata esse assunto com muita propriedade, bastando que se faça breve estudo de suas decisões a esse respeito.
Apesar das peculiaridades inerentes ao regime jurídico dos serviços públicos, a aplicação do CDC a esses serviços é hoje uma realidade que consta expressamente de diversos dispositivos legais. No Estatuto Consumerista, destacam-se os artigos 4º, II (melhoria dos serviços públicos como princípio da Política Nacional das Relações de Consumo); Art. 6º, X (prestação adequada dos serviços públicos como direito dos consumidores) e 22 (obrigação do Estado e de seus delegatários pela prestação de serviços adequados). De outra banda, a Lei 8.987/1995 (Lei de Concessões e Permissões de Serviços Públicos), em seu art. 7º, caput, faz remissão genérica à aplicação do CDC aos usuários de serviços públicos.
Cabe ressalvar que o CDC não abrangeu todos os serviços públicos, prevendo sua aplicação aos serviços públicos remunerados de forma específica, mas silenciando a respeito daqueles custeados por meio da arrecadação de tributos.
Não obstante essa lacuna, importantes os já foram dados, sendo forçoso citar a seguinte decisão do STJ a respeito da matéria, consoante julgamento do Recurso Especial 263229/SP, Primeira Turma, Relator o Ministro José Delgado, publicado no DJ 09/04/2001, p.332), interposto por uma indústria de pescado, onde ficou assentado que:
1. Há relação de consumo no fornecimento de água por entidade concessionária desse serviço público a empresa que comercializa com pescados;
2. A empresa utiliza o produto como consumidora final;
3. Conceituação de relação de consumo assentada pelo art. 2º, do Código de Defesa do Consumidor;
4. Tarifas cobradas a mais. Devolução em dobro. Aplicação do art. 42, parágrafo único, do Código de Defesa do Consumidor;
5. Recurso provido”.
Considerando ser a Cosanpa fornecedora dos serviços de abastecimento de água à população de Santarém, e não o fazendo de forma adequada como denunciam em uníssono os moradores, resta vulnerado o Art. 6º, X, do CDC, que obriga à prestação adequada dos serviços públicos como direito dos consumidores.
Apesar da grande inadimplência, como justificar a negativação do nome dos devedores, à luz do art. 476 do Código Civil ao norte mencionado, considerando que a Companhia não está cumprindo sua elementar obrigação contratual? É do consumidor ou da COSAMPA a responsabilidade pelo estado fragmentário das tubulações de água da cidade, velha de décadas, que já não am a pressão da água e se rompem com frequência num festival de desperdício?
Parece evidente que se deve procurar um meio termo para solucionar as dívidas e as fraudes representadas pelas ligações clandestinas, que ninguém defende e o perigo de se criar uma sociedade de pessoas de nome sujo, que ninguém aceita.
Prudência, portanto, é o que se espera da COSANPA, para que sua alardeada iniciativa não venha a provocar uma avalanche de ações judiciais de proporções Marianenses, buscando reparação de dano moral pelos negativados, utilizando-se dos argumentos antes expendidos, frustrando assim seu propósito de compelir os devedores a pagarem por uma água que mal ou nunca receberam ou continuam a receber de forma absurdamente precária e inconstante.
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* É advogado, escritor, ex-professor da ESA e da UNAMA. Membro da Academia Paraense de Letras Jurídicas. Escreve regularmente neste blog.
Muito seu texto…e muito bom saber um caminho de defesa legal contra essas prática de abusiva da cosampa.