
Há corpos que não am pela Terra sem imprimir suas sombras no solo que caminha; há olhos que não apenas veem, mas sentem o tempo, a dor, o espanto e o milagre de coexistir para além das formas mecânicas do trabalho, da diáspora, da contemplação da natureza e do sentido de ser. Sebastião Salgado foi um desses corpos, esses olhos, esses nomes que se tornaram verbo e seu after; ser bastião foi resistir em árvore solitária no meio à devastação, foi converter a fotografia em ponte entre mundos antagônicos que raramente se cruzam sem que um seja esmagado pelo outro.
Salgado registrou a condição humana, a reconfigurou poeticamente num campo gravitacional de ética, estética e física do sensível, entrelaçando em um testemunho cosmopolítico, que exige do espectador mais do que olhar: exige presença e doação.

Como um humanista sideral, seu olhar arqueológico e “astrofísico” ao mesmo tempo produziu um telescópio voltado para o invisível da Terra, das relações humanas, das formas de existir como individuo, mostrou que há buracos negros de humanidade onde o capital se condensa até o absurdo.
No monumental Trabalhadores (1993), há supernovas de fé, de crença e de esperança, nela a vida explode em preto e branco – que de ado apenas o presente: sob a sombra do invisível; bem como do exílio, em Êxodos (2000), cada fotografia é uma dobra no espaço-tempo, instante que, embora fixo, pulsa a densidade de mil histórias. Fez a fotografia se entrelaçar com as ciências humanas, a literatura, a ecologia, a física quântica e até a teologia da terra, onde em Gênesis (2013), realiza uma cosmogonia imagética, uma cartografia das origens que nos obriga a confrontar a pequenez da modernidade diante da vastidão do tempo geológico.
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Não há só beleza: há um chamado ancestral; a Terra, através de seu olhar, sussurrou aos nossos ouvidos urbanizados que ainda é possível reatar o pacto com o mundo natural que o tempo está acabando, um aviso cósmico em forma de luz e sombra.

Considerando que o ato de observar modifica o observado, a fotografia de Salgado registrou realidades, e, as alterou, as invocou, as dignificou por uma ética do olhar que permeou seus projetos. Em Sahel (1986), por exemplo, não há escapatória moral fácil: o espectador é conivente, é chamado a tomar seu posto de responsabilidade, como diz o antropólogo francês Jean Rouch, o cinema pode ser um “ato de feitiçaria” se praticado com verdade, e a fotografia enfeitiçou nossa agonia por transformações e cuidados comunitários.
Ser bastião é ser um corpo-memória que se faz testemunho, que ecoa vozes semelhantes àquelas da literatura de Eduardo Galeano e Rigoberta Menchú: um documento, um ato político-poético de redenção coletiva, como a imagem de um garimpeiro coberto de lama em Serra Pelada, isso é uma epifania secular que poderia estar em uma pintura de Caravaggio ou em uma cena bíblica, pois, o barro, o suor e a riqueza fundem-se em elementos primordiais da Terra.

Salgado opera como um colisor de partículas da alma, onde a matéria da experiência humana entra em choque com o absoluto da estética e do tempo; cada imagem carrega uma oração laica dita com a luz e a sombra. Em Êxodos, o exílio físico também é metafísico: somos todos estrangeiros em algum lugar da vida, vemos como a terra, enquanto símbolo, é mais do que chão, é herança, é corpo coletivo, e, promessa não cumprida.
E se somos transitórios dentro de uma permanência geológica, foi com o Instituto Terra que Sebastião transcendeu a imagem para documentar a morte lenta do planeta, seu gesto de replantar a Mata Atlântica com milhões de árvores é o contra-discurso, prova de que a arte pode germinar política, e que ética e ecologia não são temas distantes da fotografia, mas suas raízes.

❒ Leia também de Josué G. Vieira: Criadores e destruidores; visionários e nostálgicos.
Lembremos da Odisseia, de Homero, quando Ulisses é reconhecido por sua ama pela cicatriz, não por sua aparência, assim é a fotografia de Sebastião Salgado que reconhece as cicatrizes do mundo como traços de identidade, o corpo refugiado, o corpo operário, o corpo Terra, todos ganham nome, rosto, permanência em dignidade visível.
A obra de Salgado é campo e constelação, é documento e ritual, é denúncia e canção; sua fotografia sussurra humanidade, esperança e crença dos invisíveis à beira do abismo dos horrores, porque há beleza até na queda. O que indica que enquanto houver uma câmera apontada com ternura, haverá testemunho; daí ser bastião é um chamado a todos que ainda ousam olhar o mundo e não desviar o rosto… por isso, talvez haja salvação!



Josué Vieira, santareno, é professor, escritor, poeta e pesquisador sobre Sociedade, Cultura e Amazônia. Mora em Manaus (AM). Leia também dele: Katy, um reino além da consciência. E ainda: Desesperos, morte e silêncio na Colônia Vertical dos Perdidos.
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