Na ladeira da rua, ele assistia ao vai e vem de pessoas seguindo para seus diferentes destinos. Pessoas que caminhavam livremente, cruzavam-se, iam para onde desejavam e paravam na esquina para conversar com um conhecido. O desejo dessas pessoas de ir era grande. E elas iam!
Usavam suas pernas no momento que quisessem e talvez nem percebiam o quanto era valiosa a sensação de ir para onde desejavam ir. Os olhos de Padilha reparavam os detalhes de cada perna que se movimentava e seguia na ladeira onde ficava a sua casa.
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Padilha olhava para as pessoas e poucas pessoas o reparavam. Os poucos acenavam para ele e o que ele mais queria era acenar de volta na mesma rapidez que era correspondido. Talvez Padilha reparasse mais as pernas que subiam e desciam a ladeira da rua onde ele morava.
Talvez desse importância mais para os pés que pisavam firmemente no chão quente ou mesmo os pés que pisavam e se sujavam no chão de terra num beco que tinha ali próximo. Mas suas pernas não podiam se mexer na mesma velocidade que as outras e nem seus pés poderiam se sujar no chão de terra. Não era possível ir além do desejo. Padilha estava parado e sentado numa cadeira de rodas.
Mas como ele queria dar um grande salto com suas pernas! Como ele queria sair de sua casa e poder curtir o mundo e tudo mais que pudesse fazer! Talvez subir e descer a ladeira várias vezes, tornar-se um andarilho pela cidade, cumprimentar os conhecidos e os desconhecidos e poder ver como estão os outros lugares longe do seu reduto.
Padilha não tinha agilidade e nem força para pelo menos andar com cadeira de rodas nas ruas. Sentia que seu corpo estava atrofiando com o ar do tempo. Sentia que os seus movimentos eram lentos, que estava perdendo a capacidade até mesmo de falar normalmente. De certa forma, ele estava encarcerado na sua própria casa e a sonhada liberdade já era impossível.
Imediatamente veio à sua cabeça muitas lembranças. Lembrou-se da sua meninice, quando sua mãe preparava bolo de milho, cortava em fatias e colocava numa bandeja para vender na rua. O jovem Padilha, carregando sua bandeja com bolo, andava descalço pelas vias de terra, oferecendo a iguaria por um preço bem pequeno. Depois que terminava, e com o bolso cheio de moedas e cédulas, corria à toda velocidade até a sua casa, cheio de alegria.
Além de trabalhar, também buscava por diversão. E o futebol era a sua maior diversão. Preferia ser goleiro. Mas quando era necessário, tornava-se jogador de linha. Juntava-se aos amigos, corriam bastante e respiravam o suficiente para perceber o valor de poder ir aonde quisesse sem precisar da ajuda de outra pessoa. Correr e pular sem qualquer problema. Abraçar a liberdade e lançar-se nos ambientes desejados. Ah, lembranças boas…
— PERFIL: Dinaor, o patroleiro que faz história, sob piçarra, das ruas de Santarém.
Mas Padilha foi crescendo, alcançou a maioridade e logo foi notando diferenças na forma de se mexer, de caminhar e de correr. O tempo foi ando e ele foi sentindo que não estava mais normal. A dificuldade de caminhar ou a fazer parte do seu dia a dia. Não conseguia mais levantar as pernas como antes.
Durante um tempo, apoiava-se nas paredes, arrastando os pés pra frente, para tentar caminhar. Já não conseguia mais correr pelas ruas. Ainda arriscava montar uma bicicleta e pedalar, mesmo com grandes dificuldades. Ao mesmo tempo que vivia, tentava entender o porquê dessas limitações que o incomodava diariamente.
A situação só piorava. Depois de muito cair de bicicleta pelas ruas, Padilha sentia que não conseguiria também se locomover apoiando-se nas paredes. Sentia-se cada vez mais fraco. As pernas estavam fracas. Foi perdendo a força e o reflexo. Bem que ele se esforçava, mas não dependia dele.
Quando Padilha parou pra pensar, já não saía de sua casa há um bom tempo. Olhava ao redor e notou que o mundo que o rodeava eram as paredes de sua casa. O mundo infinito que viveu na adolescência ficava depois da porta de saída da sua residência. Mas ele não conseguia chegar ao desejado infinito. Suas pernas imóveis não permitiam. A tristeza ou a ser frequente quase todos os dias.
Ir ao banheiro? Alimentar-se? Vestir-se? Assistir ao televisor? Deitar-se para dormir? Já não conseguia fazer tudo sozinho. Alguém teria que ajudá-lo, carregá-lo e conduzi-lo. Ele não podia seguir para onde queria como antes. Ele não podia mais ser o que sempre era. Sobre sua alma e sobre seus sentimentos existia um grande peso.
Queria respirar tranquilamente, contudo, a tranquilidade já não morava em sua vida. Ouviu de familiares que ele possivelmente estaria com Esclerose Lateral Amiotrófica. Não chegaram com ele pra dizerem o que ele tinha. Nem mesmo esse tipo de informação recebia dos parentes. Ele apenas ouvia de conversas que aconteciam em outras partes da casa, mas que as paredes, com ouvidos, contavam-lhe sem qualquer piedade. Sentia-se imprestável. Não se sentia mais como um alguém.
Não conseguia mais mexer as pernas. Os movimentos dos braços foram ficando mais lentos. Para se alimentar, alguém tinha que colocar a comida em sua boca. Alguém tinha que vesti-lo. Alguém tinha que limpá-lo. Quando desejava algo, teria sempre que recorrer a alguém. A quem? Com quem? Sua vida ou a ser uma incômoda rotina: banho, café da manhã, almoço, banho e janta. Ele podia desejar alguma coisa, mas não podia fazer sozinho. Ele podia falar, mas não podia realizar sozinho. Só se alguém fizesse por ele. Mas quem?
Lá estava Padilha na frente da sua casa, sentado na cadeira de rodas e olhando as pessoas subirem e descerem a ladeira da rua onde morava. O desejo de fazer o mesmo não tinha tamanho. Como ele queria sair daquela cadeira, jogá-la fora e voltar à liberdade que tinha na sua meninice! Mas sua vida resumia-se àquela tediosa rotina, algo que se tornou automático e incômodo para ele.
Cansava-se de ver as mesmas paredes e o mesmo chão. Cansava-se de tentar se mexer sem conseguir. As pessoas da casa iam e vinham ao seu redor, faziam o que queriam e o que Padilha só queria era fazer o mesmo. Com seus mais de 40 anos de vida, percebia-se cada vez mais fraco e cada vez mais incapaz de ser o alguém que tanto desejava. Ele estava certo que seus desejos nunca deixariam de ser desejos, e assim seria para sempre, certo de que a situação poderia ser ainda pior.
— ESTILO do artista plástico: Cartas de Apolinário: modo de criação do artista plástico.
Diante dessa vida regada de tristeza, em muitos momentos Padilha ou a reagir com violência quando alguém lhe dava algo pra comer ou quando lhe dava banho. E esse alguém, sentindo-se ofendido, perdia a paciência e começava a discutir e a tratá-lo mal. Poucos se colocavam em seu lugar para sentirem o sufoco em que ele estava. Sua situação física afetava até mesmo sua relação com quem o ajudava. Era preciso amor verdadeiro para que fosse existir boa relação e entendimento entre eles. No fim das contas, Padilha era quem mais sofria, fosse por ver alguém brigando com ele porque o tédio da vida o tornava chato, fosse devido as limitações de seu corpo que estavam se tornando cada vez maiores.
Seu mundo havia parado há muito tempo. Os movimentos aconteciam ao seu redor, mas ele mesmo era como um corpo morto num lugar de vidas e cores que se agitavam e faziam as coisas acontecerem. Sentado na cadeira de rodas, sentia seu corpo doer por ficar por muito tempo naquela posição.
Seria a solução morrer e deixar de vez todo esse sofrimento? Antes de responder a essa pergunta, Padilha sentiu vontade de urinar. Olhou para os lados e não viu ninguém. Com a voz fraca, começou a chamar por alguém. Nenhuma resposta. O tempo foi ando. Insistiu em gritar por nomes. E a vontade de ir ao banheiro foi ficando cada vez mais forte, ao mesmo tempo que a esperança de alguém atender ao seu pedido foi ficando maior.
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