Vem pra rua!

Publicado em por em Artigos

por Sérgio Freire (*)

Sérgio Freire - Blog do JesoHá uns dias venho ensaiando escrever sobre tudo isso que vem acontecendo no país. Soltei algumas avaliações e opiniões aqui e ali em papos descontraídos e em posts e tweets nas redes.

No entanto, vi-me obrigado a escrever a fim de sistematizar melhor para mim mesmo o que penso e como leio esse texto que agora se escreve na história do Brasil. O primeiro desafio foi como organizar as ideias para melhor articulá-las. É muita coisa e tudo ao mesmo tempo agora.

Leia também:
Avesso.

Organizei o texto em três partes: o que causou tudo isso, o que significa tudo isso e para onde vai tudo isso. É preciso um habeas corpus preventivo contra possíveis ressalvas às ideias aqui expostas. As minhas argumentações vêm de um lugar: a análise de discurso, área com que trabalho academicamente.

Compreender como o sentido se produz e por que se produz de determinada forma é meu ganha-pão na universidade. É daqui que eu falo e daqui analiso os fatos. Ressalva feita, vamos lá.

De onde vêm tudo isso? O que disparou esse processo de tomada das ruas pelo povo? Sobre o que as pessoas estão protestando? Essas são perguntas que muita gente boa – e outras nem tão boas – têm tentado responder e eu as tenho lido atentamente. Li muitas opiniões e análises, de todo lado, de toda cor. Tudo o que caia na minha tela eu processava para poder formar opinião.

Na teoria do Discurso, dizemos que há o enunciado e há o processo discursivo. O enunciado é o que se fala. O processo discursivo é o que torna essa fala possível. O enunciado é linguístico. O processo, como o nome diz, é discursivo, sócio-histórico.

No nível da enunciação, o que causou o que agora vemos foram os tais dos vinte centavos na agem de ônibus. No nível do processo, as manifestações são a culminância de uma série de situações históricas acumuladas, que não tiveram espaço para simbolização social e que, portanto, voltaram do recalque assombrando o sujeito, nesse caso o sujeito coletivo.

Os vinte centavos foram a gota d’água do copo que estava cheio. E não dava mais pra engolir. É: pulsão, limites e o retorno do recalcado.  Leiam Freud. Ele quebra tudo. Mas isso, que não foi sobre os vinte centavos, a gente já sabe.

O que começou como agenda específica – a tarifa nos trasportes – serviu de gatilho, arrebentou o cadeado da corrente da porta. As redes sociais potencializaram e serviram de infovias para a circulação do sentido da indignação coletiva. Não foram elas que causaram tudo, claro, mas elas deram condições sem paralelo na história para que tudo acontecesse.

O trem cresceu e aglutinou indignações de várias naturezas, umas com as quais a gente concorda e outras das quais a gente discorda, afinal se trata, como dissemos, de uma indignação coletiva. A insatisfação pontual se anabolizou, muito graças à violência da polícia paulista – valeu, Alckmin! Tal qual um buraco negro, ela começou a sugar para si tudo que se avizinhava. Em situações normais de temperatura, essa pressão se dissiparia na voz e nos atos de uma oposição política que catalisaria para si a insatisfação.

Acontece que as oposições políticas no Brasil, modo geral, se esvaziaram quando optaram por não ter agendas políticas, mas por alimentar Fla-Flus contra o político X ou Y, por demonizar o partido W ou Z. O movimento que o país vive é, portanto, o Político, com o P maiúsculo da Pólis, da cidade, em estado bruto, sem a mediação da representação. A história mostra que o povo vai às ruas quando não se sente representado e estamos vivendo uma baita crise de representatividade.

O que significa tudo isso? Exatamente essa crise de representatividade achatou o movimento, o tornando horizontal, enredado, sem líderes, heterárquico, wiki. Pode-se ter gente falando pelas pautas específicas, mas ninguém está autorizado a falar pelo movimento político. Petistas megalomaníacos, narcisistas e paranóicos acham que é um movimento conspiratório para derrubar a presidente.

Claro que ela, como presidente, vira alvo preferencial das insatisfações. Mas daí achar que é all about PT é forçar a barra. É esse modus pensandi que faz, por exemplo, o Zé de Abreu dispensar o trabalho dos iconoclastas ao se destruir sozinho falando besteira, desqualificando o povo, chamando as pessoas de “idiotinhas” porque foram às ruas “convocados pela Fiat”. Dã. Parecem que vivem numa bolha semântica impermeável, incapazes de compreender o que é isso, de fato.

Gente do PSDB também pensa que tudo isso é sobre derrubar a Dilma, sendo que esses ficam felizes com a hipótese. Redondamente enganados. Ok, é sobre isso também. Nas duas nuances. Mas não é  sobre isso. Aí é que está o equívoco. Nessa etapa, não adianta reclamar por foco, não adianta querer líderes. O líder é a indignação centrípeta. O foco é não ter foco. O blur é o foco. Trata-se de um movimento Gita: o tudo, o nada, a mosca na sopa, a mão do carrasco. Raulzito.

Para quem estuda ecossistemas comunicacionais, o que vivemos é um exemplo perfeito de como funciona uma rede distribuída paralela. Não tem centro, não temcluster. Leiam Baran. Google. Está on line.

Essa forma não tradicional de se organizar, em autopoiesis, que se reconfigura por si, deu nó na cabeça de muita gente. “Mas afinal, sem objetivo não se chegará a lugar nenhum!”, “Sem pauta específica não funciona!”, “Cadê a ordem para ter progresso?”. Mimimi cartesiano, que não dá conta do movimento, da movência.

O ministro Gilberto Carvalho perguntou-se, perplexo, o que significava tudo isso. Deu até para imaginá-lo vendo tudo pela TV no Palácio do Planalto e dizendo: “WTF?!”. “Quem convoca greve é central sindical e sindicato, que defendem direitos dos trabalhadores, não anônimos do Facebook”, disse o agoniado presidente da CUT, Wagner Freitas. Como assim, né, Wagner? Esse pessoal querendo se apropriar da política? Da “nossa” política?! Governos atordoados porque a falta de líderes não sinaliza quem cooptar.

Sindicatos e partidos em polvorosa porque muito dos cooptáveis perderam valor de face. Até mesmo companheiros combativos da política partidária chegaram a acusar jocosamente as manifestações de “micaretas”. De novo, me parece que é uma amargura que tem como pano de fundo a desqualificação do movimento pela ousada apropriação do Político pela população em geral, acabando com a exclusividade do seu brinquedinho.

Irônico: gente que ou a vida reclamando horrores da ividade política reclama horrores quando ela é posta em xeque pela súbita participação política. “Ain, mas isso não é fazer política direito!”. Quem disse que tem receita para protestar, cara pintada? Vivemos o fim das receitas prontas. Cozinha-se na hora para saciar a fome com os ingredientes que se tem à mão. Lyotard dizia isso na década de 1970. Leiam o velhinho.

Muito sintomático também foi o silêncio dos políticos no meio de milhares de gritos. Atordoados, eles permaneceram atentos, de mutuca. Em um primeiro momento, a presidente veio com um discurso esquizofrênico, louvando as manifestações por um lado e, por outro, dizendo que seu governo já faz um monte de coisa. É como se ela dissesse: “Ei, pessoal! Não tem motivo, né?” Dois discursos de um boca só, um Janus semântico.

O ex-presidente Lula, que ficou muito tempo calado, avaliou que o desgaste político abriu uma brecha para que algum “aventureiro” venha a ser eleito como o Sassá Mutema da vez, um salvador da pátria. Um medo de Lula é localizado em Joaquim Barbosa, ministro do Supremo, Supremo que, aliás, também não se pronunciou sobre isso tudo. Fato é que muita gente entra nessa do Joaquim. Eu tenho mil ressalvas. Mas é outro papo.

Para onde vai tudo isso? Em reunião com com prefeitos e governadores, a presidente anunciou mudanças. Na segunda-feira (24), Dilma disse que irá pedir um plebiscito que autorize uma Constituinte para fazer a reforma política. “Eu trago propostas concretas e disposição política para construirmos pelo menos cinco pactos em favor do Brasil”.

São eles:

a) pacto pela responsabilidade fiscal nos governos federal, estaduais e municipais, para “garantir a estabilidade da economia” e o controle da inflação;

b) pacto pela reforma política, incluindo um plebiscito popular sobre o assunto e a inclusão da corrupção como crime hediondo.

c) pacto pela saúde, afirmando que quando não houver médicos brasileiros, será feita a “importação” de médicos estrangeiros para trabalhar nas zonas interioranas do país;

d) pacto pelo transporte público, anunciando que o governo destinará “50 bilhões de reais a novos investimentos em obras de mobilidade urbana” e

e) pacto pela educação pública: Dilma pediu mais recursos para a educação, voltando a falar que é necessário que o Congresso aprove a destinação de 100% dos recursos dos royalties do petróleo para a educação. O Plano Nacional de Educação (PNE), em tramitação no Senado, destina 10% do Produto Interno Bruto (PIB) para a área, além dos royalties.

Esse anúncio de mudanças foi recebido de muitas formas. O que é normal, visto que está tudo muito fragmentado. Claramente é uma estratégia política para distensionar. Particularmente, eu vejo que o bonde andou e a gente precisa continuar empurrando. A presidente jogou um monte de coisa nas costas do entes federativos e do Congresso, que vai ter de se virar nos trinta. Quem vai dizer não com fumaça ainda saindo do cano do revólver?

Não acredito que o anúncio da presidente Dilma vai acabar com as manifestações. Daqui a pouco, elas vão perder força por si só porque nessa época em que vivemos tudo cansa e a rápido mesmo. É da constituição do novo tecido social da liquidez, de que fala Bauman, outro velhinho do cacete.

Minha aposta é a de que a coisa vai se desdobrar em um segundo o: a organização da indignação em movimentos plurais com pautas específicas. É preciso, como dizem, dar ordem ao caos senão nossa cabecinha calcada na Modernidade não dá conta. Mas a mudança é irreversível. Isso é inegável. Como diria Chico Science: “um o que a gente dá e a gente não está mais no mesmo lugar”.

Os deslocamentos já visíveis. Gente que nunca se preocupou com essas coisas falando sobre a PEC 37, sobre o Ato Médico, sobre os devaneios do Feliciano. Pessoas que só postavam fotos de seus cachorros reclamando reforma política, dos médicos cubanos, pedindo aumento de verbas para a educação e a punição dos corruptos. A torcida do Flamengo enchendo de kkkk fotos e comentários de políticos tradicionais querendo tirar uma lasquinha dos movimentos. Com a acentuação da crise de representatividade, como vai ficar a política partidária? E as eleições que vêm aí? E o país? Eu juro, leitor querido, que estou morrendo de curiosidade cidadã.

A moça que trabalha aqui em casa disse que quase foi às vias de fato com a cobradora do ônibus. É que ela não queria dar os dez centavos de troco da agem hoje. “Antes eu até deixava, seu Sérgio! Agora eu não deixo mais não!”, disse ela. É. A Lene foi para rua. E não foi por causa dos centavos só, não. Podem ter certeza disso, meus caros. É hora de você ir pra rua também. E isso já é uma metáfora.

– – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – –

* Amazonense, é escritor, professor doutor e tradutor. Além de blogueiro. É o novo colaborador do blog.


Publicado por:

One Response to Vem pra rua!

  • Manifesto Geral das Insatisfações

    Aos 21 dias do mês de junho do ano de 2013, a população brasileira, em exercício das liberdades constitucionais;
    considerando que o poder emana do povo;
    considerando que a República Federativa do Brasil é um Estado Democrático de Direito e objetiva a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a erradicação da pobreza e da marginalização;
    considerando a pujança da economia brasileira e os incontáveis predicativos do território nacional;
    considerando a precária situação do sistema público de saúde que, por diversas vezes, constitui realidade atentatória à dignidade da pessoa humana;
    considerando a extensa e pesada carga tributária em vigor, reconhecidamente alta quando comparada com a de outros Estados Nacionais;
    considerando a realidade da máquina pública em todas as esferas do governo, as condições de prestação dos serviços públicos, bem como o histórico de corrupção que assola o país;
    considerando a repressão indiscriminada praticada pela polícia e a inércia das autoridades para impedir o avanço dos abusos;
    considerando o oportunismo da minoria que usa o movimento para cometer atos ilegais e tem desviado o foco das atenções;
    faz público este documento escrito para expor a legítima vontade do povo, em termos gerais, sem prejuízo de outros manifestos futuros, mais específicos e regionalizados. Eis o que se quer:
     A livre manifestação do pensamento, em atos pacíficos e apartidários, sem opressão policial. A segurança deve ser prioridade, no entanto, em nenhuma hipótese será itida a tentativa de silenciar o povo pelo uso da força. Não é aceita a violência, tanto a perpetrada pela população quanto a pela polícia. A postura deve ser de abertura de um canal de diálogo.
     A reestruturação do ensino, mediante investimento maciço no nível fundamental e progressivo nos níveis médio e superior. O número de vagas deve ser ampliado até atender as necessidades imediatas da população. A educação básica, composta pelos níveis fundamental e médio, deve resgatar as pessoas que não tiveram adequado aprendizado e, para isso, será ofertada com qualidade e em turnos que permitam o o a todos. A longo prazo, importa robustecer os cursos técnicos e fomentar a pesquisa nos diversos níveis.
     A devida atenção à saúde, com a melhoria do sistema público e a intensificação de políticas públicas no setor. A preferência ao planejamento preventivo, sem prescindir a oferta regular de tratamento curativo aos enfermos. Os leitos hospitalares, instalados em locais próprios, devem ser em número suficiente.
     A disponibilização de transporte público satisfatório e a baixo custo. A maior parcela da população brasileira usa diariamente o referido serviço, seja para as atividades regulares de trabalho e educação, seja para participação em atividades culturais, esportivas e sociais. A redução do preço da agem é o primeiro o para o alcance de outros tantos direitos sociais.
     A redução gradual dos impostos. O excesso tributário sem o efetivo retorno através de políticas públicas e serviços públicos adequados é insustentável. O preço dos bens de consumo e a concretização de direitos patrimoniais são extremamente onerados pela incidência de impostos.
     A desburocratização da prática istrativa, com sistemas facilitados nos serviços e maior celeridade na prestação. Garantia de transparência nos atos dos três poderes. Divulgação, incentivo e abertura de programas ou métodos de participação popular nos destinos do país, mediante o exercício da cidadania.
     O combate ostensivo à corrupção. A preservação dos poderes institucionais do Ministério Público. A prioridade na tramitação dos processos que tenham por objeto casos de corrupção e, quando houver condenação, a realização de medidas que garantam o fiel cumprimento da decisão em tempo hábil.
     A aplicação correta das verbas públicas, sem desvios ou superfaturamento, e a redução das verbas destinadas ao custeio dos agentes políticos. A moralidade na gestão pública é primordial para a consecução dos objetivos nacionais, para a evolução econômica e social e para a consolidação das diretrizes acima apontadas.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *