por Paulo Silber (*)
A regra é a camisa-de-força da exceção.
Existem casos, porém, em que os pesos dessa relação de domínio e submissão invertem seus valores de tal maneira, que uma lei, digamos, irrevogável é dominada pela rebeldia da própria sombra. Todo Golias tem o seu Davi, para levar a conversa para linguagem cristã.
Um exemplo dessa travessura rasga Belém de ponta a ponta, sobre um celim sem conforto, com tresloucada alegria, há décadas.
— ARTIGOS RELACIONADOS
É o viado da bicicleta.
Quem nunca o viu, exibindo a lordose como um fardão de veludo, da Cremação ao Umarizal, da Matinha à Presidente Vargas, de Nazaré ao Guamá?
Perdão. Chamar aquele côncavo vertebral de lordose é reduzir as ilusões a pó, tosar as asas da imaginação, cegar o susto, engolir o soluço.
Aquela talvez seja a maior de todas as lordoses já surgidas numa coluna: a super lordose. Uma lorverdose, eu diria.
Tratar aquele vão como desvio é como acatar a lógica do Entroncamento, a obra-prima da engenharia de tráfego de Belém, infelizmente executada pelo avesso.
Ao viado da bicicleta, porém, os louros (mesmo que ele seja chegado a um negão).
Ele representa a desmoralização da lei da gravidade, com sua inusitada falta de eixo. É a exceção, despida da camisa-de-força, levando a regra a nocaute, com despeito.
Tenho a impressão, quando o vejo, que em algum momento, talvez numa lombada do caminho, o osso occiptal, que conecta a nossa coluna ao norte, vai se agasalhar nas reentrâncias do ilíaco, no cone sul. Como se fosse a coisa mais normal do mundo andar por aí, pedalando, com o pescoço imitando um elevador.
Imagine o Homem-Mola, de férias das aventuras de Os Impossíveis, brincando em Belém de roçar a nuca no cóccix para delírio da galera. Êêêê!
O viado da bicicleta é o improvável em movimento.
E não está nem aí.
Calça as sandálias da incógnita, as luvas do deboche, municia o vocabulário com os impropérios de vogais elásticas para as respostas que deverá lançar a quem o fustiga, pula da vida seca para a frigideira da popularidade como uma pipoca errante, injeta na veia a autoestima das bruxas malvadas, que se contentam com a versão esquizofrênica dos espelhos – e pedala. Pedala muito.
É a caricatura do ciclista belemense em três dimensões – quatro se for valorada a profundidade do desvio dorsal, calculada a parábola de seu eixo imaginário e pervertido, considerado o raio da anômala reentrância.
Ou, quem sabe, seria ele apenas uma ilusão, um mito, um símbolo.
O grito do ciclista na condição de anão do trânsito, o mais fraco, para quem a rua é uma corda-bamba ligando a esperança da partida com a incerteza da chegada, sem rede de proteção.
Um fantasma, talvez. Um delírio.
A visagem sapeca que desliza entre os carros derramando merthiolate nas feridas do trânsito, só de sacanagem.
A miragem cerzida pelo medo da guerra urbana, um Quasímodo a ferver nossos preconceitos no calor da calçada e desafiar nosso meio-fio de tolerância.
O bicho do pé, a afta da gengiva, o cisco no olho, a espinha no ouvido, o cabelo arruinado no… você entende.
O viado da bicicleta pode ser traduzido como a essência do incômodo: seu perfil delgado me remete ao único par entre os números primos, o saliente 2, mas ainda assim apenas o reflexo do 2, o numeral invertido no espelho, o desenho do patinho na lagoa, solitário e em marcha à ré.
Pode também não ser coisíssima nenhuma.
Apenas um viado, mesmo, debochado e suado, predestinado a ser errado assim, como um querubim safado.
Feliz e triste ao mesmo tempo. Engraçado, embora inconveniente. Aceitável, porém esquisito. Heroi e insolente. Um personagem, enfim, sem precisão de nexo, carimbo de sexo ou condição de amplexo.
Como os anjos, que a gente não explica, jamais define e nunca abraça.
Incluindo os anjos tortos.
Aqueles que escapam da camisa-de-força, pelos atalhos da exceção.
– – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – –
* É jornalista, natural de Marapanim.
Leia também dele:
A saga de Maciste, a sina de Saroquinha e o incrível poder do Beijo-de-Moça – 3.
O texto é bem escrito, mas muito repetitivo e sobrecarregado de adjetivos com o mesmo sentido.
aqui já teve um viado que andava de bicicleta…o mig…!lembram?
Que delícia de texto! Que poético perfil de um anônimo! Parabéns com louvor, mestre Silber!
Já tive a oportunidade de ver o viado da bicicleta e este de gay não tem nada. Apenas pedala daquele jeito fazendo graça sabe-se lá porque? Ele salve engano e pai de família e de fato uma figuraca nas ruas de Belem.
José, tenta fazer o registro fotográfico dele, para que possamos vê-lo aqui no blog.
Conheço um aqui em Belém, o vejo em vários bairros da cidade e sempre me pergunto se ele roda Belém inteira ando, mas está sempre de shorts, será que não é o mesmo? é muito engraçado, ele olha para todos os lados, inclusive para trás, sempre com um ar sedutor ao encontrar um homem, se exibe e consegue rebolar em cima da bicicleta.
É uma figura única e original!
Por aqui não temos um tão raro exemplar de viado, mas nas ruas de Santarém pedala uma louco errante, desbocado, incômodo e como o seu personagem a desafiar os pedestres imputando palavrões e as vezes palavras desconexas, que só a loucura é capaz de entender!
Parabéns Silber pela belíssima descrição de tão inusitado personagem. Na próxima ida a Belém faço questão de vê-lo e quem sabe até fazer uma foto, se ele deixar é claro! O que achas?